Foram apenas um par de parágrafos e um outro punhado de artigos, mas a publicação da MP 984/2020 pode trazer mudanças profundas no futebol brasileiro. É que ela altera a dinâmica da comercialização dos direitos de transmissão das partidas, a principal fonte de renda para muitos clubes do País.

Foi a partir dela que começou a ser travada uma disputa política e jurídica entre dois grandes agentes do futebol nacional, entre Flamengo e Globo, e que pode ter importante ramificações em todo o calendário de competições.

Os fenômenos recentes da FlaTV e da FluTV, que bateram recordes de visualizações no YouTube, também aconteceram por conta da MP 984, e podem ser uma tendência entre os clubes daqui para frente.

Mas você sabia que em Portugal alguns clubes fizeram negócios milionários com seus canais? E que na Espanha o cenário era muito similar ao do Brasil, e foi mudado “na marra”, para se alinhar com as ligas da Inglaterra e da Alemanha? E como são os direitos de TV nesses países?

A Esportelândia responde a essas perguntas a seguir, traçando um panorama dos direitos de transmissão de futebol nas principais ligas europeias, e tenta explicar um pouco da disputa que eles tem gerado aqui no Brasil.

Entenda a MP 984 e a briga Flamengo x Globo

No dia 18 de junho de 2020, foi publicada a Medida Provisória nº 984. Assinada pelo Presidente Jair Bolsonaro, ela altera o artigo 42 da Lei 9,615, a chamada Lei Pelé. Entre outros pontos, o artigo 42 legisla sobre a detenção e a comercialização dos direitos de transmissão de jogos de futebol.

O ponto que toca a discussão é o seguinte: no artigo original, é estipulado que os direitos de transmissão de uma partida de futebol pertencem aos dois times que vão jogá-la. Sua comercialização, portanto, só acontece a partir de um consenso de ambos.

Com a MP 984, esses direitos pertencem somente aos mandantes, aos times que jogam em casa. A comercialização, assim, é exclusivamente feita pelo mandante. Houve ainda a inclusão do parágrafo 4, uma exceção, em que nos casos de indefinição de mando de campo, os direitos são novamente compartilhados entre os dois times.

Antes, para se transmitir uma partida, um canal de TV tinha de ter contrato com ambos o mandante e o visitante, como tem sido o caso da Globo no Campeonato Brasileiro, por exemplo.

Direitos de transmissão: Globo, Flamengo e as cotas na Europa
Com a MP 984, o mandante é detentor dos direitos de transmissão das partidas. (Foto: Fotos Flu/ CC)

Agora, basta ao canal ter um contrato com o dono da casa para transmitir o jogo.
Para ter uma melhor noção como essa alteração impacta a questão dos direitos, veja o exemplo da Turner, a empresa que administra os canais Esporte Interativo. Em 2019, ela fechou contrato com sete dos 20 clubes da série A para o Campeonato Brasileiro.

Quando os jogos eram entre os times com o qual ela tinha contrato, estava tudo certo. Mas quando envolviam qualquer outro dos 13 times que tinham assinado com a Globo – neste caso, com a SporTV – as partidas não eram transmitidas nos canais fechados.

A alteração na Lei Pelé permite agora que a Turner transmita todos os confrontos em que seus contratados são mandantes. Um salto de 12 para mais de 100 jogos transmitidos.

Assim, contratos como os assinados por esses sete clubes – Athletico, Bahia, Ceará, Fortaleza, Internacional, Palmeiras e Santos – com a Turner podem ser, na teoria, 10 vezes mais lucrativos. Mudam-se, então, todas as forças das futuras negociações.

Das negociações passadas também, aparentemente.

A briga Flamengo x Globo

No primeiro dia de julho, a FlaTV transmitiu, pelo YouTube o jogo Flamengo 2 x 0 Boa Vista, válido pela última rodada da Taça Rio, o segundo turno do Campeonato Carioca.

O streaming bateu mais de 12 milhões de visualizações, sendo 2 milhões delas simultâneas, um recorde mundial em transmissões esportivas pela internet, batido dias depois pelas 3,3 milhões visualizações na FluTV, na final da mesma Taça Rio.

No dia 2 de julho, a Rede Globo anunciou a rescisão do contrato de transmissão do Campeonato Carioca de 2020, alegando uma quebra de contrato prévia a partir do streaming da FlaTV, já que a emissora tinha adquirido os direitos dos jogos do Boa Vista.

A questão legal aí envolvida é na interpretação da aplicação da MP 984. O Flamengo e as decisões judiciais que o permitiram transmitir a partida partiram do princípio que ela é válida imediatamente, enquanto a Globo entende que ela não seria válida num contrato celebrado antes da publicação da medida, que era o caso da emissora com o Boa Vista.

Já a briga moral tem uma ordem mais financeira. Flamengo e Globo não entraram em acordo pela cessão dos direitos do clube para a emissora, especificamente na transmissão do Campeonato Carioca de 2020 – Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil e Libertadores (que tem outra comercialização), já estavam negociados.

Basicamente, o Flamengo queria mais dinheiro. A Globo não pagou, o Rubro-Negro não cedeu, e os jogos do time no carioca não foram transmitidos em nenhum lugar, até o jogo da FlaTV.

O mais curioso é que a disputa pode ter data de validade. Por lei, uma Medida Provisória é válida somente por 60 dias, podendo ser estendida por mais 120 dias. Se nesse período ela não for aprovada pelos parlamentares e promulgada, ela “caduca”.

A briga e o debate que tem gerado são ainda mais datados se olharmos para o que é feito nas principais ligas da Europa.

Até porque, entre os cinco principais campeonatos – Inglês, Espanhol, Alemão, Italiano e Francês – não há consenso na legislação da detenção dos direitos, mas todos são comercializados da mesma maneira. Vamos falar de cada um desses casos a seguir.

Como funcionam os direitos de transmissão da Premier League

Na Inglaterra, os direitos de transmissão são de exclusividade do mandante das partidas, assim como pode ser no Brasil como a MP 984. A diferença é que lá, eles são comercializados em acordos coletivos pelos clubes.

Os times formam um bloco, a instituição Premier League, que faz toda a estrutura de broadcasting dos jogos, e vende, em pacotes com números pré-estabelecidos de jogos, rodadas e horários, a transmissão do Campeonato Inglês.

Esse bloco é diferente da Federação Inglesa de Futebol, a FA, que regulamenta o esporte no País, cuida da seleção, etc. A FA comercializa as transmissões das Copas da Inglaterra e da Liga Inglesa

Com a venda dos direitos em bloco, os clubes ingleses conseguiram impor suas condições comerciais e valorizar o produto. Os últimos acordos de cessão para as transmissões nacionais e internacionais foram, respectivamente, por 4, 4 e 4,2 bilhões de libras.

A divisão das cotas de TV da Premier League

Esses valores bilionários deixam o Inglês confortavelmente no topo dos Campeonatos mais valiosos do mundo. O mérito não é só da venda coletiva, mas também do método de distribuição desse dinheiro.

A grana das transmissões internacionais é repartida igualmente entre os 20 times da primeira divisão. A renda vinda das transmissões nacionais é dividida num método que virou referência mundial:

  • Metade é repartida igualmente entre todos os participantes;
  • 25% são distribuídos de maneira progressiva do 20º ao 1º colocado;
  • Os restantes 25% são distribuídos progressivamente entre os times com partidas mais transmitidas, do menos procurado ao mais procurado.

Como as cifras são astronômicas, ainda que a distribuição seja relativamente justa e que a diferença financeira entre o campeão e o último colocado seja a menor das cinco grandes ligas europeias, a diferença prática continua grande.

Ainda assim, os times pequenos podem trabalhar com um caixa muito maior, o que torna o campeonato mais competitivo, pelo menos no equilíbrio das partidas, e o produto a ser vendido fica muito mais valorizado.

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Direitos de transmissão da La Liga

A Espanha alcançou nos últimos anos o posto de segundo campeonato mais valioso do mundo, e foi por conta das transformações na comercialização dos direitos de transmissão.

Entre 1997 e 2015, o cenário espanhol era muito similar ao proposto pela MP 984 no Brasil, com os direitos exclusivos do mandante. A diferença é que era necessário um acordo com os times visitantes para a transmissão.

Isso gerava uma certa instabilidade nas negociações, fora a questão da total desigualdade entre os valores conseguidos por Barcelona e Real Madrid, que já eram muito maiores em relação a clubes do naipe de Valencia e Sevilla, e portanto absurdamente maiores do que por nanicos como Eibar e Granada.

Em 2015, uma legislação causou um certo alvoroço, e até ameaçou uma paralisação por parte de alguns clubes. A partir dali, os direitos continuariam a ser dos mandantes, mas teriam de ser repassados para o bloco de clubes, a La Liga.

Direitos de transmissão: Globo, Flamengo e as cotas na Europa
Real Madrid e Barcelona tinham valores muito maiores nas negociações individuais (Foto: Mkt Esportivo)

Isso para o Campeonato Espanhol. A Copa do Rei e a Supercopa da Espanha são comercializados pela Federação Espanhola.

A polêmica do decreto espanhol foi arrefecendo, enquanto La Liga se valorizava. A diferença de 8 vezes entre o primeiro e o último colocado do último modelo caiu para 3,6, e sem alterar a ordem de grandeza dos clubes, além de aumentar a competitividade das partidas e o lucros individuais.

Novamente, parte disso foi não só pelos bons negócios conseguidos em bloco, mas pela distribuição desses lucros. O esquema espanhol é diferente do inglês. Não há diferenciação dos tipos de direito, e todo o dinheiro obtido é dividido assim:

  • 90% vai para a primeira divisão, e 10% para a segunda;
  • Desses 90%, metade são repartidos igualmente entre os vinte participantes;
  • A outra metade é distribuída de maneira variável, sendo metade disso (25% dos 90%) de acordo com um ranking que leva em conta as classificações dos últimos cinco anos;
  • O restante (25% dos 90%) leva em conta um coeficiente entre audiência de TV e média de público nos estádios. Nesse ponto, nenhum clube pode ter mais 20% nem menos de 2% do montante.

Direitos de transmissão da Bundesliga

Foi da Bundesliga que La Liga tomou o posto de segundo campeonato mais valorizado. E foi por méritos próprios, até porque a Bundesliga também tem um bom modelo.

Na Alemanha, os direitos de transmissão também são de exclusividade do mandante, mas também negociados em bloco, sem a necessidade de obrigação legal.

A comercialização coletiva é tocada pela DFL, a Liga do Futebol Alemão, que vende em conjunto as transmissões da primeira e da segunda divisão. Também são formados pacotes, com datas, rodadas, quantidade de jogos e até horários pré-estabelecidos.

Não existe um veto para um comprador único desses direitos, mas a última negociação para a transmissão nacional entre 2021 e 2025, que ficou em 4,4 bilhões de euros, foi bastante distribuída entre canais.

Como na Inglaterra, as cotas de TV nacionais e internacionais têm métodos diferentes de distribuição. As nacionais são dividas em quatro partes:

  • A primeira, de 70% do montante, leva em conta um ranking com as classificações dos últimos cinco anos do Campeonato Alemão, com o ano mais recente valendo cinco vezes mais que o ano mais distante;
  • A segunda, de 5%, considera o desempenho dos últimos 20 anos, com o mesmo peso entre cada ano;
  • A terceira, de 2%, faz um ranking de uso de jogadores da base abaixo dos 23 anos, ou pelo menos registrados em clubes da liga antes dos 18 anos;
  • A última, de 23%, divide os times em grupos de acordo com o ranking de desempenho dos últimos cinco anos. Do 1º ao 6º colocados, é um valor, do 7º ao 11º, outro, e por aí vai.

Os direitos internacionais também são divididos em quatro partes. A primeira tem 5 milhões de euros, que são repartidos entre os times da segunda divisão, aumentando 1 milhão por ano. Do que resta, são:

  • 50% no ranking dos cinco anos;
  • 25% repartidos igualmente;
  • 25% distribuídos num ranking de desempenho internacional nos últimos 10 anos;

Direitos de Transmissão do Campeonato Italiano

Na Itália, os direitos de transmissão são dos mandantes. Como na Espanha, a legislação obriga os clubes a cedê-los à liga.

Diferentemente do país Ibérico, a intervenção estatal italiana foi motivada por questões políticas de monopólio das transmissões, com relações promíscuas entre políticos e veículos de mídia, e pelos casos de manipulação de resultado nas diferentes divisões do Campeonato Italiano.

O novo modelo tem ajudado o crescimento do futebol no país, ainda que a diferença entre o primeiro e o décimo colocado seja uma das maiores da cinco principais ligas da Europa.

A divisão das cotas de TV leva em conta todos os negócios e com uma peculiaridade:

  • 50% do montante é dividido igualmente entre os clubes da primeira divisão;
  • 20% é distribuído pelo coeficiente de média de público no estádio e presença do time na televisão;
  • 30% leva em conta o desempenho, sendo 10% da média dos últimos cinco anos, 15% do último ano e 5% por resultados históricos.

O curioso caso da Ligue 1

Quando falamos que cada país tem suas especificidades, estávamos falando principalmente da França. Lá, a Federação Francesa é quem detém os direitos de transmissão das partidas, que repassa para os clubes, que se organizam e vendem em bloco.

Outra curiosidade é que 83% do dinheiro da vendas das transmissões eram distribuídos igualmente pelos clubes. Hoje, o esquema é no 50-30-20:

  • 50% repartidos igualmente;
  • 30% pela posição na tabela;
  • 20% pela presença na televisão.

O método francês tem seus pontos positivos e negativos.

Por um lado, a negociação mais recente conseguiu ultrapassar a marca do bilhão, fechando o pacote das transmissões de 2020 à 2024 por 1,15 bilhões de euros; por outro, o Campeonato Francês é o que tem a maior disparidade econômica entre o primeiro e o décimo colocado, considerando as cinco principais ligas da Europa.

Direitos de transmissão: Globo, Flamengo e as cotas na Europa
O PSG de Neymar impulsionou o valor dos pacotes de TV, mas tem monopolizado a Ligue 1 (Foto: Getty)

As lições do Campeonato Português

Um país fora do espectro das principais ligas, mas ainda bastante influente no futebol mundial é Portugal. Lá os direitos também são do mandante das partidas, mas as negociações das vendas são individuais. Exatamente como no Brasil.

Por isso mesmo, há algumas lições para se tirar do modelo português. Também houve uma quebra de um monopólio de uma grande emissora, no caso a Sport TV, por parte de grandes agentes do futebol local.

Benfica, Porto e Sporting investiram em seus respectivos canais, com transmissões profissionais dos seus jogos, com conteúdos relacionados ao clube e até com outros esportes.

Eles depois conseguiram negócios milionários, em parcerias com grandes empresas de mídia, na casa do meio bilhão de euros cada.

Em compensação, o Campeonato Português tem uma disparidade financeira enorme. Enquanto na Inglaterra, Espanha, Alemanha, Itália e França a diferença média entre seus primeiros e últimos colocados é de 3 vezes, em Portugal o primeiro colocado é doze vezes mais rico que, pasmem, o quinto.

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*Última atualização em 13 de julho de 2020